Plano do presidente Javier Milei prevê construção de pequenos reatores modulares e criação de cidade nuclear na Patagônia, mas especialistas questionam viabilidade técnica e econômica do projeto
Em uma tentativa ousada de colocar a Argentina na vanguarda tecnológica global, o presidente Javier Milei anunciou um plano ambicioso que une dois temas estratégicos do século XXI: energia nuclear e inteligência artificial. O governo pretende transformar o país em um centro de dados movido a energia limpa, com foco em atrair investimentos bilionários de gigantes da tecnologia como Amazon, Google, Microsoft e outras.
No centro desse projeto está a proposta de construir Small Modular Reactors (SMRs), ou pequenos reatores modulares – um modelo nuclear compacto, transportável e com potencial para fornecer energia limpa, escalável e estável a grandes estruturas como data centers de IA. Caso obtenha êxito, a Argentina poderá ser o primeiro país ocidental a operar comercialmente um SMR, tornando-se uma referência internacional em inovação energética.
“A IA impulsionará um crescimento exponencial na demanda por energia. E não temos como supri-la com os meios atuais”, afirmou Demian Reidel, principal conselheiro de Milei e chefe do recém-criado Conselho Nuclear Argentino. Para ele, os SMRs são a chave para garantir a infraestrutura elétrica necessária para a era digital. “O que está para acontecer com a energia nuclear pode posicionar a Argentina como protagonista de uma revolução energética global.”
A proposta envolve ainda a criação de uma “Cidade Nuclear” na Patagônia, onde seriam instalados os primeiros reatores e onde também se concentrariam os data centers de IA. A Invap, empresa estatal de tecnologia, é a responsável técnica pelo projeto. Em 2024, ela registrou nos EUA a patente do ACR-300, modelo de SMR desenvolvido na Argentina. Segundo Reidel, quatro unidades estão previstas na primeira fase, com apoio de um investidor americano não identificado. O Estado argentino não aportará recursos diretos, mas manterá participação no projeto – embora os detalhes sobre o modelo de governança ainda não tenham sido revelados.
Um plano ambicioso diante de um histórico conturbado
A Argentina já tem experiência em tecnologia nuclear, mas também acumula um histórico de projetos inacabados. O CAREM, reator desenvolvido pela Comissão Nacional de Energia Atômica (CNEA) desde 2014, foi paralisado recentemente, mesmo estando 85% concluído, após cortes orçamentários promovidos pelo próprio Milei. Quase 500 trabalhadores foram dispensados, e a viabilidade econômica do projeto foi colocada em xeque pelo atual presidente da CNEA, Germán Guido Lavalle.
Cientistas ouvidos pela imprensa especializada criticam a falta de informações técnicas sobre o ACR-300 e apontam riscos na abordagem do governo. “Esse projeto não possui nenhum detalhe de engenharia divulgado”, disse Adriana Serquis, ex-presidente da CNEA. “Trata-se mais de uma peça de marketing político do que de um plano técnico robusto.”
Mesmo assim, a estratégia de Milei encontra respaldo no cenário internacional. Um relatório do Goldman Sachs, publicado em janeiro de 2025, afirma que a energia nuclear será um componente essencial da infraestrutura elétrica necessária para sustentar a revolução da IA. Nos Estados Unidos, o governo federal já anunciou US$ 900 milhões em investimentos para promover SMRs, e grandes empresas de tecnologia estão firmando parcerias com desenvolvedores nucleares.
Big Techs, IA e energia limpa: uma equação estratégica
Para a Argentina, a aposta é dupla: suprir a futura demanda energética da IA e, ao mesmo tempo, atrair capital estrangeiro e conhecimento tecnológico. Data centers voltados à inteligência artificial exigem fornecimento de energia ininterrupta e com baixa emissão de carbono — uma combinação que, segundo Reidel, apenas a energia nuclear consegue oferecer plenamente.
A viagem de Milei ao Vale do Silício em 2024, onde se encontrou com figuras como Elon Musk, Mark Zuckerberg e Sam Altman, teve o objetivo de apresentar o plano a potenciais investidores. Apesar da repercussão, nenhum anúncio formal de investimento por parte das Big Techs foi feito até agora.
Enquanto o projeto avança nos discursos e nas patentes, a viabilidade prática ainda levanta dúvidas. Para analistas do setor energético, a construção de SMRs demanda anos de desenvolvimento, forte regulação internacional e um arcabouço técnico que vá além de intenções políticas.
Se bem-sucedido, o plano de Milei poderá posicionar a Argentina como um case global de inovação energética aplicada à transformação digital. Caso contrário, pode se somar à lista de grandes promessas não cumpridas do país no campo nuclear.