Pesquisa inédita mostra sobreposição crítica entre áreas de alto potencial eólico e habitats de alimentação de aves e mamíferos marinhos, alertando para impactos irreversíveis se não houver planejamento com base científica
A transição energética rumo a fontes renováveis, como a energia eólica offshore, é vista como peça-chave na luta contra as mudanças climáticas. No entanto, uma nova pesquisa global publicada no Journal of Environmental Management acende um sinal de alerta importante: sem planejamento adequado, essa transição pode colocar em risco áreas marinhas de alta biodiversidade, fundamentais para a sobrevivência de aves e mamíferos marinhos.
O estudo, conduzido por universidades espanholas — Miguel Hernández de Elche, Múrcia, Complutense de Madri e Alicante — mapeia, pela primeira vez, a sobreposição entre zonas com alto potencial para geração eólica offshore e áreas críticas de alimentação para espécies marinhas. Os resultados são alarmantes: há uma coincidência expressiva entre as regiões ideais para a instalação de turbinas eólicas no mar e os principais hotspots de biodiversidade marinha, especialmente no Hemisfério Norte.
Biodiversidade e vento competem pelo mesmo espaço
Segundo os pesquisadores, aves e mamíferos marinhos costumam se alimentar em áreas com abundância de plâncton e peixes — as mesmas regiões onde a densidade de vento é alta, o que atrai a instalação de turbinas eólicas. Essa coincidência espacial, se não for tratada com rigor técnico, pode provocar impactos ecológicos duradouros.
Para prever as áreas mais sensíveis, os cientistas utilizaram a estrutura das cadeias alimentares marinhas — desde o fitoplâncton até os grandes predadores — como modelo para estimar as zonas preferenciais de forrageamento de espécies ameaçadas. Com esses dados, construíram mapas globais de risco que sobrepõem o potencial eólico com os habitats marinhos mais críticos.
Esses mapas revelam que os maiores riscos estão concentrados em regiões como o Atlântico Norte e o Mar do Norte, onde há intensa atividade de planejamento para novos parques eólicos offshore. Em contrapartida, o Hemisfério Sul apresenta menos sobreposição, embora os autores ressaltem que isso pode estar relacionado à falta de dados científicos na região, e não à ausência de risco.
Efeitos adversos vão além do impacto direto
Embora as turbinas eólicas offshore possam, em alguns casos, funcionar como refúgios marinhos — ao restringirem atividades pesqueiras — os efeitos negativos da sua instalação também são amplamente documentados. Entre os principais estão o ruído subaquático, que interfere na comunicação de espécies como golfinhos e baleias; a colisão de aves com as hélices em movimento; e a degradação dos habitats marinhos no entorno das estruturas.
Além disso, a instalação de parques em áreas de trânsito ou alimentação de animais pode alterar comportamentos naturais. Há registros de aves que evitam essas estruturas, o que pode prejudicar sua eficiência alimentar e reprodução.
Nesse sentido, o ecologista Juan Manuel Pérez-García, um dos autores do estudo, destaca que o objetivo da pesquisa não é frear a transição energética, mas sim garantir que ela ocorra de forma inteligente e compatível com a conservação da natureza. “Precisamos de planejamento baseado em ciência para evitar que a solução para uma crise crie outra”, afirma.
Ferramentas para evitar o conflito
O estudo recomenda que os governos incorporem ferramentas robustas de planejamento espacial marinho em seus processos de licenciamento ambiental. A criação de zonas de exclusão — áreas onde a instalação de turbinas seja vetada em função da alta sensibilidade ecológica — é uma das medidas mais urgentes sugeridas pelos pesquisadores.
Outras ações incluem a expansão das Áreas Marinhas Protegidas (AMPs), hoje insuficientes para cobrir os pontos de maior risco, e o uso de tecnologias como rastreadores GPS em aves e mamíferos para entender melhor seus padrões de movimento e alimentação.
Os autores destacam ainda que muitas das áreas em risco não estão atualmente sob proteção legal, o que limita a capacidade de mitigação de impactos. Para eles, a política energética deve caminhar junto com a política ambiental, garantindo que a busca por uma matriz limpa não destrua os ecossistemas marinhos mais frágeis.
O desafio do equilíbrio entre energia e natureza
O avanço da energia eólica offshore é uma necessidade diante da urgência climática. No entanto, como mostra o estudo, a pressa para instalar turbinas não pode atropelar a ciência nem a biodiversidade. A boa notícia é que as ferramentas para evitar os impactos existem — o que falta é incorporá-las aos processos de decisão.
Para que a transição energética seja verdadeiramente sustentável, será necessário ouvir não apenas os ventos da inovação, mas também os alertas da natureza.