Medida Provisória usa verba de desestatização da Eletrobras para antecipar pagamento de dívidas setoriais, mas especialistas questionam se todos os consumidores se beneficiam da mesma forma
Em abril de 2024, a Medida Provisória n. 1.212 trouxe uma proposta ambiciosa: quitar antecipadamente as dívidas das chamadas Contas Covid e Escassez Hídrica, responsáveis por assegurar a saúde financeira das concessionárias de energia elétrica em meio à pandemia e à crise hídrica que afetaram o Brasil nos últimos anos. A iniciativa prevê a utilização de recursos da Capitalização da Eletrobras para amortizar essas contas, antes diluídas nas tarifas dos consumidores, e promete alívio imediato para o bolso do consumidor cativo, ou seja, os que permanecem no mercado regulado de energia. No entanto, há um debate crescente sobre a real efetividade da medida, com questionamentos sobre quem realmente será beneficiado e quem, na prática, arcará com o custo dessa antecipação.
A MP usa verbas que seriam destinadas a reduções tarifárias para o pagamento de dívidas setoriais, criando uma mudança nas expectativas dos consumidores cativos. Especialistas e analistas do setor energético apontam que a distribuição dos benefícios da quitação pode não ser uniforme, favorecendo consumidores de algumas regiões e penalizando outros. Em estados onde as distribuidoras acumularam dívidas maiores, como Rio de Janeiro, Ceará e Goiás, os consumidores podem de fato sentir uma diferença imediata na conta de energia. Já em estados onde a demanda por crédito das distribuidoras foi menor, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, o benefício tarifário será reduzido, frustrando as expectativas desses consumidores.
O Contexto: Por Que Essas Dívidas Foram Criadas?
As Contas Covid e Escassez Hídrica foram criadas para estabilizar o mercado de energia em meio a crises financeiras e climáticas que abalaram o setor nos últimos anos. Em 2020, a pandemia de Covid-19 aumentou a inadimplência e reduziu o consumo de energia, gerando uma crise de fluxo de caixa para as concessionárias. Para evitar que o problema se traduzisse em aumentos tarifários drásticos, o governo brasileiro criou a Conta Covid, com um empréstimo de aproximadamente R$ 15 bilhões, permitindo às concessionárias um fôlego financeiro imediato.
Já em 2021, uma das maiores crises hídricas da história do país ameaçou a produção das hidrelétricas, gerando uma nova escalada de custos energéticos. Para mitigar os impactos, o governo criou a Conta Escassez Hídrica, garantindo R$ 5 bilhões em empréstimos para assegurar a continuidade da oferta de energia, recorrendo a usinas térmicas, cujo custo de operação é notoriamente elevado. Esse montante também foi repassado para as concessionárias de energia, sendo pago gradualmente pelos consumidores ao longo dos anos.
A MP 1.212 e o Fundo da CDE Eletrobras
Desde a desestatização da Eletrobras, ocorrida em 2022, um fundo especial (CDE Eletrobras) foi criado para beneficiar os consumidores cativos por meio de descontos tarifários até 2047. Os repasses anuais desse fundo foram pensados como uma forma de compensação para o mercado regulado, que, em teoria, traria tarifas de energia elétrica mais baixas para o consumidor. A MP 1.212, contudo, altera esse cenário ao direcionar esses recursos para a quitação antecipada das Contas Covid e Escassez Hídrica. Com isso, os consumidores cativos perderão, entre 2025 e 2027, o benefício tarifário esperado do fundo CDE Eletrobras.
De acordo com a previsão do Ministério de Minas e Energia (MME), essa antecipação dos repasses não afetará as tarifas de consumidores do mercado livre, que continuarão pagando os encargos estabelecidos pela Conta Covid e Escassez Hídrica até que a amortização seja totalmente concluída. Para o consumidor cativo, a quitação antecipada promete reduzir a tarifa de energia, mas isso poderá ocorrer de maneira desigual entre os estados, com benefícios concentrados onde as distribuidoras precisaram de maior apoio financeiro para superar as crises recentes.
Benefícios Distribuídos de Forma Desigual
Embora o governo defenda a MP como uma medida para aliviar o bolso dos consumidores cativos, a realidade é que os efeitos práticos são mais complexos. Segundo projeções da plataforma de análise TR Soluções, a antecipação da quitação das dívidas beneficiará majoritariamente consumidores em estados onde a dependência de auxílio financeiro foi maior. No Rio de Janeiro, por exemplo, onde a Enel acumulou grandes volumes de dívida para manter a tarifa acessível, o impacto da quitação antecipada pode ser sentido de maneira mais direta e positiva pelos consumidores.
Já em estados como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, onde as concessionárias precisaram de menos recursos, o consumidor não perceberá tanto a diferença tarifária. Isso ocorre porque a MP prioriza a distribuição de recursos conforme o histórico de uso dos empréstimos, e os consumidores cativos desses estados verão uma redução menor na tarifa. Em resumo, os benefícios não são uniformemente aplicados, o que levanta a questão sobre a justiça da medida entre as diversas regiões e distribuidoras.
Reflexões e Expectativas para o Futuro
A discussão sobre a MP 1.212 também suscita preocupações sobre o impacto a longo prazo de políticas que transferem o custo de crises setoriais diretamente para o consumidor final. Ao alocar o fundo CDE Eletrobras, projetado para diluir o custo tarifário para os consumidores cativos, para o pagamento antecipado de dívidas, a MP pode comprometer a estabilidade tarifária de médio prazo, especialmente em um setor tão fundamental quanto o energético.
Além disso, especialistas apontam que um modelo tarifário mais justo e alinhado com as necessidades regionais deve ser considerado para garantir que o custo de crises setoriais não recaia desproporcionalmente sobre consumidores de determinadas localidades.
A partir de outubro de 2024, as concessionárias já interromperam as cobranças relativas às Contas Covid e Escassez Hídrica, conforme estipulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e o impacto tarifário deve ser mais perceptível nas contas de energia dos próximos meses. Resta saber se os consumidores das áreas menos beneficiadas serão compensados de outras formas ou se continuarão pagando por políticas de redistribuição que privilegiam estados específicos.
Em última análise, a MP 1.212 representa um alívio imediato para algumas localidades, mas desperta o debate sobre a necessidade de uma política energética que promova equilíbrio tarifário para consumidores de todas as regiões.