Proposta que amplia gratuidade na conta de luz para famílias de baixa renda gera tensão no setor elétrico ao incluir dispositivos que beneficiam carvão, ampliam gasodutos e impactam o mercado livre de energia
A recente Medida Provisória (MP) nº 1.300, publicada na última semana pelo Governo Federal, promete reformular de forma significativa a estrutura do setor elétrico brasileiro. Embora o objetivo central seja ampliar os benefícios sociais na conta de luz, com gratuidade para famílias de baixa renda, a proposta rapidamente se tornou alvo de intenso debate no Congresso Nacional. Em menos de uma semana, a MP acumulou mais de 600 emendas parlamentares, que vão desde ajustes técnicos até propostas que reacendem discussões antigas sobre os rumos da matriz energética nacional.
Entre os principais pontos de atenção estão as emendas que propõem prorrogar incentivos à geração de energia a partir de carvão mineral, especialmente na região Sul do país, além de medidas que favorecem a expansão da malha nacional de gasodutos. Esse movimento preocupa especialistas, ambientalistas e agentes do setor elétrico, que veem riscos de retrocessos na transição energética brasileira.
O que prevê a MP 1.300?
A essência da MP está centrada na ampliação da tarifa social de energia elétrica, beneficiando famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, que passam a ter gratuidade total na conta de luz. Segundo estimativas do governo, a medida pode beneficiar mais de 100 milhões de pessoas, representando um avanço significativo no combate à pobreza energética no país.
Além disso, a MP prevê:
- Abertura total do mercado livre de energia a partir de 2027, permitindo que qualquer consumidor escolha seu fornecedor.
- Revisão de subsídios tarifários, com o fim de descontos para consumidores do mercado livre.
- Restrições à autoprodução de energia, especialmente em arranjos que vinham sendo utilizados para redução de custos por grandes consumidores e players do mercado.
Carvão, gás e a pressão dos combustíveis fósseis
Entre as centenas de emendas protocoladas, algumas geraram reações imediatas no setor, especialmente aquelas que buscam prorrogar o uso de usinas movidas a carvão mineral até 2050. Parlamentares da região Sul, como o deputado Afonso Hamm (PP-RS) e o senador Esperidião Amin (PP-SC), propuseram dispositivos que garantem a continuidade da operação de usinas como Candiota (RS) e Figueira (PR), sob o argumento de preservação de empregos e segurança energética regional.
O carvão mineral, apesar de sua importância histórica para a geração elétrica na região Sul, é uma das fontes de energia mais poluentes, e sua extensão até 2050 vai na contramão dos compromissos climáticos assumidos pelo Brasil, como a redução de emissões de gases de efeito estufa no âmbito do Acordo de Paris.
Outra linha de emendas aponta para o fortalecimento da infraestrutura de gás natural, com propostas como a apresentada pelo deputado João Carlos Bacelar (PL-BA), que sugere a cobrança de royalties sobre o gás reinjetado em campos de petróleo, visando estimular a oferta no mercado interno e, consequentemente, viabilizar a expansão da malha de gasodutos no país.
Se, por um lado, defensores dessas propostas argumentam que o gás natural pode funcionar como energia de transição, garantindo segurança energética enquanto as renováveis não suprem toda a demanda, por outro, críticos alertam para o risco de bloqueio de investimentos em energia solar, eólica e outras fontes limpas.
Impacto sobre o mercado livre e a autoprodução
Além da pauta dos combustíveis fósseis, a MP e suas emendas atacam diretamente o modelo de negócios de grandes consumidores de energia e empresas que atuam no mercado livre e na autoprodução.
A retirada dos descontos nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (TUST/TUSD) pode representar um aumento considerável de custos para esses agentes, afetando acordos bilionários em curso e comprometendo a atratividade de projetos futuros.
O deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), por exemplo, protocolou emendas buscando suprimir a vedação a novos contratos de autoprodução para usinas já operacionais, além de propor um teto para os descontos tarifários, numa tentativa de mitigar o impacto sobre o setor privado.
Para as empresas do segmento de energia solar, eólica e de geração distribuída, essas mudanças são vistas como um golpe no crescimento sustentável do setor, que tem sido um dos motores da diversificação da matriz elétrica brasileira nos últimos anos.
Outros temas nas emendas: de Itaipu às PCHs
O elevado volume de emendas apresentadas evidencia a sensibilidade e a importância estratégica do setor elétrico para o país. Além das propostas que tratam do uso de fontes como carvão e gás, diversas iniciativas legislativas buscam influenciar diretamente a configuração do mercado energético nacional, refletindo interesses variados e a complexidade do tema.
Entre os dispositivos propostos, destacam-se aqueles que determinam a obrigatoriedade da contratação de energia proveniente de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), fortalecendo a participação do setor hidrelétrico de menor porte na matriz energética. Outros mecanismos visam impedir aumentos nos preços da energia gerada pela Usina de Itaipu, com o objetivo de proteger os consumidores de eventuais repasses tarifários. Também há iniciativas que propõem formas de ressarcimento a empresas impactadas por restrições operativas impostas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), buscando mitigar prejuízos e assegurar maior estabilidade ao setor.
Transição energética em xeque?
O avanço dessas propostas, se aprovado, representa um ponto de inflexão para o Brasil. Embora a ampliação da tarifa social seja amplamente celebrada por seu impacto social, o ressurgimento de subsídios para combustíveis fósseis e o enfraquecimento dos incentivos às fontes renováveis colocam em risco os compromissos climáticos do país e podem reverter avanços na transição para uma matriz mais limpa, diversificada e sustentável.
Especialistas do setor, consultores e representantes da sociedade civil já se manifestaram contrários à inclusão de “jabutis” na medida provisória, ressaltando que o caminho sustentável passa por fortalecer o papel das renováveis, modernizar o setor elétrico e garantir inclusão social sem retrocessos ambientais.
Próximos passos
A MP 1.300 está agora sob análise da Comissão Mista do Congresso, que deverá emitir um parecer antes do envio para os plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. O prazo é de 120 dias, e caso não seja votada, perde validade.
Até lá, o debate deve se intensificar, mobilizando empresas, associações do setor, ambientalistas e a sociedade, que acompanham atentamente os desdobramentos de uma medida que pode redefinir o futuro energético do Brasil — para melhor ou para pior.