Primeira venda de energia paraguaia para o mercado livre brasileiro levanta preocupações sobre viabilidade técnica e legal; especialistas destacam desafios na integração da energia e a necessidade de ajustes regulatórios
Nesta sexta-feira (26), o Paraguai dará um passo importante ao realizar seu primeiro leilão para a venda de energia ao mercado livre brasileiro. O acordo, que encerra um impasse sobre o valor da tarifa da hidrelétrica de Itaipu, foi estabelecido entre o governo paraguaio e o ministro de Minas e Energia do Brasil, Alexandre Silveira. A iniciativa representa um avanço na integração energética regional, uma meta há muito esperada pelos setores energéticos de ambos os países. No entanto, a pressa em realizar o leilão suscitou uma série de preocupações entre especialistas, que apontam para a complexidade e os riscos envolvidos no processo.
O Paraguai está oferecendo 100 MWmédios de energia excedente produzida por suas hidrelétricas, principalmente a Acaray. Contudo, o leilão levanta questões significativas sobre a viabilidade da operação, dado que o Brasil atualmente enfrenta uma sobreoferta de energia e já existem desafios técnicos e legais relacionados à integração dessa energia ao mercado livre brasileiro.
Desafios Técnicos e Regulatórios
Um dos principais pontos de controvérsia é a conexão física da energia paraguaia com a rede elétrica brasileira. Segundo relatos de especialistas no setor, a única maneira prática de entregar a energia seria utilizando a cota de Itaipu, uma alternativa que exigiria mudanças substanciais no tratado que regula a operação da usina binacional. As dificuldades são amplificadas pelas condições da usina de Acaray, que está enfrentando problemas técnicos significativos. A capacidade atual de Acaray é de 234 MW, com uma energia firme de apenas 53,5 MWmédios, e uma das suas quatro unidades está fora de operação. Desde janeiro do ano passado, a usina produziu apenas 94,1 MWmédios, abaixo dos 100 MWmédios oferecidos no leilão.
Além disso, o sistema de transmissão de corrente contínua de Furnas, utilizado para a conexão com Itaipu, foi projetado exclusivamente para a energia gerada por Itaipu. Qualquer fluxo de energia no sentido oposto poderia ser interpretado como uma anomalia pelo sistema de proteção, o que poderia causar o desligamento da conexão e interromper o elo de Furnas. A complexidade técnica do processo levanta a questão de como a energia paraguaia seria efetivamente integrada à rede elétrica brasileira sem causar problemas no sistema existente.
Preocupações e Expectativas
O edital do leilão estipula que o vencedor será aquele que oferecer o maior preço pelo prazo mais longo e conseguir realizar pagamentos antecipados anualmente. Para cumprir a entrega da energia, a Ande, a estatal paraguaia responsável pelo leilão, anunciou que utilizará a conexão da usina de Itaipu na margem direita, que corresponde ao lado paraguaio. No entanto, a viabilidade técnica dessa rota continua sendo um ponto de dúvida, e a entrega real da energia ainda não está clara. A Ande também está considerando a possibilidade de um swap — uma operação de troca onde outra fonte de energia compensaria a energia oferecida pelo Paraguai.
A complexidade desse swap é evidente. Ele envolve a revisão de acordos e tratados e uma série de ajustes regulatórios que ainda não foram formalmente implementados. O artigo 6º da Lei 5.899/73, que regula os serviços de eletricidade da binacional Itaipu, estabelece que o sistema de transmissão de corrente contínua de Furnas é dedicado exclusivamente à energia de Itaipu. Qualquer modificação nesse sentido exigirá uma revisão extensiva do Anexo C do tratado e a aprovação de mudanças pelos corpos diplomáticos e congressos dos dois países.
Resposta das Autoridades e Setor
Representantes do Ministério de Minas e Energia (MME), do Operador Nacional do Sistema (ONS) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) foram procurados pela reportagem e forneceram respostas variadas. O MME afirmou que está trabalhando para garantir que a venda de energia do Paraguai ocorra dentro dos melhores trâmites possíveis, e que a eventual oferta poderia representar uma redução de custos para os consumidores brasileiros. O ONS, por sua vez, indicou que a importação de energia é tecnicamente viável, mas ressaltou que ainda são necessárias decisões regulatórias adicionais. A CCEE se comprometeu a atuar conforme a regulamentação estabelecida para viabilizar a comercialização da energia importada.
O acordo entre Brasil e Paraguai, formalizado em abril de 2024, estabelece a tarifa de Itaipu para os próximos anos e permite que o Paraguai venda sua energia ao mercado livre brasileiro. No entanto, a implementação desse acordo ainda enfrenta desafios substanciais. A necessidade de ajustes regulatórios e técnicos, juntamente com as complexidades do sistema de transmissão, sugere que o processo de integração da energia paraguaia ao mercado brasileiro exigirá um esforço contínuo e colaborativo entre os dois países.