Fatores como curtailment e descolamento de preços regionais impõem nova lógica de decisão para projetos de geração distribuída
O mercado de energia elétrica no Brasil atravessa uma transformação estratégica silenciosa, mas profunda. A crescente inserção de fontes renováveis na matriz energética, especialmente solar e eólica, trouxe benefícios inegáveis, como a redução de emissões e diversificação da matriz, mas também revelou novas camadas de complexidade que agora impactam diretamente a rentabilidade dos projetos e a forma como os investimentos são decididos.
De acordo com análise da Thymos Capital, assessoria financeira e estratégica especializada no setor elétrico e integrante do Grupo Thymos Energia, três fatores vêm ganhando protagonismo nas decisões de autoprodução e contratação de energia: curtailment, descolamento de preços entre submercados e modulação horária. Esses elementos, outrora secundários, agora estão no centro da tomada de decisão de grandes consumidores e investidores institucionais.
Fim da era da simplicidade nos projetos renováveis
Durante boa parte da última década, os projetos de energia renovável foram avaliados principalmente com base em seu potencial de geração. Regiões com alta incidência solar ou ventos constantes, como o Nordeste brasileiro, tornaram-se epicentros do desenvolvimento de parques solares e eólicos, atraindo capital nacional e internacional.
No entanto, essa lógica começa a ser revista. “Se antes o potencial de geração era o principal fator considerado na viabilidade de um empreendimento, hoje surgem novos riscos, como curtailment, diferenças de preços entre submercados e modulação horária, o que impacta diretamente a receita dos ativos”, afirma Andre Fonseca, Managing Director da Thymos Capital.
O fenômeno do curtailment, ou despacho zero, reflete justamente os limites físicos da infraestrutura de transmissão, que não consegue escoar toda a energia gerada em determinadas regiões. Em 2024, esse fenômeno atingiu cortes de até 80% em ativos localizados no Nordeste, com uma média de 20% de perda de geração em toda a região. Isso compromete diretamente os retornos dos projetos e desestimula novos investimentos em áreas que até pouco tempo eram vistas como seguras.
Submercados e a nova geografia dos contratos
Outro desafio significativo é o descolamento entre os preços de liquidação das diferenças (PLD) nos diversos submercados. O sistema elétrico brasileiro é dividido em quatro grandes regiões: Sudeste/Centro-Oeste, Sul, Norte e Nordeste. Quando há diferença significativa entre os preços desses mercados, geradores e consumidores localizados em regiões distintas sofrem perdas financeiras consideráveis.
“Esse descasamento traz impacto, principalmente, a geradores situados no Nordeste que venderam energia para consumidores no Sudeste, obrigando-os a liquidar em um submercado e recomprar energia em outro a preços significativamente mais altos”, analisa Fonseca. Essa distorção afeta diretamente a previsibilidade de receita e impõe a necessidade de estratégias de mitigação, como contratos de hedge e diversificação geográfica do portfólio.
A previsão é que tanto o curtailment quanto o risco de submercado persistam até pelo menos 2028–2030, quando novos projetos de linhas de transmissão deverão ser entregues, ampliando a capacidade de escoamento entre as regiões brasileiras.
O desafio crescente da modulação horária
Além dos aspectos geográficos, o descompasso entre o perfil de geração e o perfil de consumo se tornou um ponto crítico. A maioria dos contratos de fornecimento entre geradores e consumidores no mercado livre é do tipo “flat”, ou seja, exige fornecimento constante ao longo do dia.
Contudo, fontes renováveis como a solar têm um perfil de geração concentrado nas horas de sol, resultando em excedente diurno e déficit noturno. Isso obriga os geradores a vender o excedente a preços baixos durante o dia e recomprar energia à noite, geralmente em valores mais elevados. O problema se agrava no segundo semestre do ano, período tipicamente mais seco, em que os preços de energia tendem a subir.
“Os contratos exigem entrega uniforme, mas fontes como a solar geram apenas durante o dia. Este cenário obriga o gerador a recomprar energia à noite, a preços mais altos”, explica Fonseca. Segundo ele, as hidrelétricas já não conseguem suavizar essa diferença como faziam no passado, o que torna a modulação horária um risco real e crescente.
Redefinição da estratégia: para onde vão os investimentos?
Diante desse novo panorama, os critérios tradicionais para escolha da localização dos empreendimentos também mudaram. Se antes o foco era exclusivamente no recurso natural (sol ou vento), agora os investidores olham também para a infraestrutura de escoamento, a integração com o sistema elétrico e o risco de exposição a preços adversos.
Regiões como o norte de Minas Gerais e o Rio Grande do Sul têm despontado como novas fronteiras para investimentos renováveis. Apesar de o Rio Grande do Sul ter ventos menos intensos do que o Nordeste, ele oferece vantagens como baixo risco de descolamento de preços e geração eólica noturna, que ajuda a mitigar o impacto da modulação horária em contratos flat.
Oportunidades estratégicas: portfólio, hedge e armazenamento
Apesar da crescente complexidade, o cenário abre oportunidades para empresas com planejamento estratégico mais robusto. Segundo a Thymos Capital, empresas que se anteciparam aos riscos estão melhor posicionadas para aproveitar o novo ciclo do mercado elétrico.
Entre as soluções em análise, destacam-se:
- Contratos de hedge: mecanismos financeiros para mitigar exposição a variações de preço.
- Diversificação geográfica do portfólio: combinação de ativos em diferentes regiões e submercados.
- Armazenamento de energia: embora ainda enfrente desafios de custo, o uso de baterias começa a ser testado como alternativa para lidar com a modulação horária.
Por outro lado, os consumidores do mercado livre também estão mais exigentes. “Hoje, os clientes priorizam geradores com maior solidez financeira e portfólios mais diversificados, capazes de enfrentar os novos desafios do mercado”, destaca Fonseca.
O futuro do setor: mais exigente, mais técnico e mais estratégico
Em resumo, a transição energética brasileira avança, mas não sem ajustes. A entrada massiva de renováveis exige nova engenharia de mercado, com um nível de planejamento, gestão de riscos e sofisticação técnica até então inédito no setor.
“O setor não vai parar, mas os investimentos seguirão um novo caminho — com mais complexidade e exigência de planejamento estratégico”, conclui Andre Fonseca. As decisões de investimento em energia renovável estão deixando de ser meramente operacionais e passam a envolver análise estrutural, risco sistêmico e visão de longo prazo.
Para os players do mercado, a palavra de ordem agora é adaptação inteligente. Só sobreviverão, e prosperarão, aqueles que entenderem os novos códigos da energia do futuro.