Após o impacto devastador da crise energética de 2022/23, especialistas alertam para a necessidade de reavaliação da arquitetura de segurança do gás natural e GNL com foco em flexibilidade, armazenamento e parcerias internacionais
A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 marcou o início de uma crise energética global sem precedentes, desencadeando um caos no fornecimento de gás natural e gás natural liquefeito (GNL) e provocando alta volatilidade nos preços desses insumos. Essa crise, a primeira em escala verdadeiramente global, não afetou apenas os mercados de gás, mas também gerou impactos severos em diversas outras commodities energéticas e setores interligados.
Com o gás natural atuando como definidor de preços em muitos mercados, inclusive na eletricidade, e desempenhando um papel crucial em setores industriais como o de fertilizantes, o efeito cascata foi devastador. A alta dependência do gás natural fez disparar o preço dos alimentos, enquanto o choque na oferta de gás trouxe à tona a fragilidade da cadeia de suprimentos global, exacerbando tensões políticas e econômicas em várias regiões do mundo.
Em resposta, a Agência Internacional de Energia (IEA) foi rápida em agir, oferecendo um Plano de 10 Pontos para Reduzir a Dependência da União Europeia do Gás Russo. Além disso, em fevereiro de 2023, uma Força-Tarefa de Monitoramento dos Mercados de Gás foi criada, visando fornecer orientações contínuas aos formuladores de políticas em meio ao caos.
O Novo Cenário dos Mercados de Gás e GNL
Embora o impacto inicial do choque de 2022/23 tenha começado a diminuir em 2024, os mercados de gás sofreram transformações estruturais duradouras. A Europa, que antes dependia pesadamente do gás russo transportado por gasodutos, teve que adaptar rapidamente sua matriz de fornecimento. O gás natural liquefeito emergiu como uma nova base de fornecimento para a região, especialmente com o aumento das importações dos Estados Unidos.
As entregas de GNL para a Europa passaram de uma média de 12% na década de 2010 para mais de 35% desde 2022. Este aumento representou uma mudança significativa no panorama energético, fazendo com que a Europa se tornasse mais dependente de uma oferta volátil e menos flexível. A transição não foi fácil, especialmente para os países em desenvolvimento, como Bangladesh e Paquistão, que enfrentaram cortes de energia rotativos devido à falta de acesso ao GNL em um mercado global cada vez mais competitivo.
Flexibilidade e Estocagem: Os Desafios da Nova Realidade
O declínio nas entregas de gás russo para a Europa revelou uma importante lição: a falta de flexibilidade no fornecimento pode ter impactos devastadores para os mercados. Historicamente, os contratos de fornecimento russo incluíam mecanismos de flexibilidade intra e interanual, que permitiam aos compradores ajustar os volumes de acordo com as necessidades sazonais ou de curto prazo. Sem essa flexibilidade, o mercado europeu se viu vulnerável às flutuações de preços e à oferta de GNL, que se tornou escassa e cara.
Além disso, a China surge como um novo ator importante no equilíbrio dos mercados globais de GNL. Com sua crescente demanda por contratos de longo prazo e uma infraestrutura de armazenamento ainda limitada, o papel da China nos fluxos globais de GNL pode crescer, mas dificilmente substituirá o protagonismo que a Europa exerceu no passado.
A maior rigidez estrutural do mercado de gás exigirá que outras opções sejam exploradas para garantir um fornecimento contínuo. O armazenamento subterrâneo, a redução de picos de produção e a resposta à demanda emergem como soluções possíveis para aumentar a resiliência do sistema energético global. Nesse contexto, a cooperação entre produtores e consumidores torna-se crucial para o desenvolvimento de novas ofertas comerciais, mecanismos de aquisição e estratégias que favoreçam maior flexibilidade no fornecimento de GNL.
Impactos Climáticos e Mudanças no Consumo de Gás
Com as mudanças climáticas gerando condições meteorológicas extremas, como ondas de calor e frio, a demanda por gás natural e eletricidade tornou-se ainda mais imprevisível. Para mercados com uma parcela crescente de energias renováveis variáveis, o gás natural continua sendo uma peça-chave para garantir a segurança do fornecimento de energia, especialmente em momentos de grande variação climática. Isso significa que a flexibilidade da oferta de gás deve aumentar para acompanhar as novas realidades da demanda.
Regulamentações Mais Rigorosas e Acordos de Cooperação
Desde 2022, várias regiões ao redor do mundo adotaram regulamentações de armazenamento de gás mais rigorosas para mitigar o risco de futuras interrupções no fornecimento. Cingapura, por exemplo, introduziu uma instalação de GNL de reserva em 2021, estendendo sua operação até 2023 para lidar com potenciais crises de fornecimento. Já a União Europeia implementou um regulamento que exige que seus países-membros mantenham estoques de gás com, no mínimo, 80% da capacidade de armazenamento até o inverno de 2022/23, e 90% em todos os invernos subsequentes.
No Japão, o Ministério da Economia, Comércio e Indústria (METI) lançou, em 2023/24, o “Strategic Buffer LNG” (SBL), um sistema que instrui empresas a vender cargas de GNL em caso de contingência, garantindo a segurança do fornecimento de energia para concessionárias locais.
A crise do gás de 2022/23 destacou a importância de mecanismos de flexibilidade ao longo das cadeias de valor de gás e GNL, evidenciando a necessidade de maior cooperação internacional e desenvolvimento de novas estratégias para mitigar futuras crises.